Planisferio Terrestre

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O que são rios voadores?

terça-feira, 12 de janeiro de 2010



Povo sem fronteiras
Bonfim, em Roraima, e Lethem, na Guiana, vivem um intercâmbio cultural que extrapola tratados internacionais e feitos da engenharia.
Por André JuliãoFoto de Érico Hiller
O agricultor Renato da Silva brinca com os filhos Ruth e Christian sob a ponte no rio Tacutu, que, em 2009, abriu a fronteira entre o Brasil e a Guiana. Mais que diversão, o banho no rio é a única solução nos dias em que faltam luz e, consequentemente, água na pequena propriedade em Bonfim.

Michael Jackson está vivo, vivíssimo. Ele mora em Lethem, mas todos os dias vai à escola em Bonfim. Fala inglês com o pai, o guianense Billiey Jackson, e português com a mãe, a brasileira Rufina. Assim como seus irmãos, Joshua e Wanderson, ele cumprimenta os colegas de classe em português e os vizinhos em inglês. Michael é um típico morador da fronteira entre o Brasil e a Guiana; filho de um território que formalmente faz parte de dois países, mas que na prática é uma terra só - onde se falam português, inglês, crioulo, wapixana e macuxi. Onde as orações são para Jesus, Alá ou Brahma.Bonfim e Lethem são duas cidades que compartilham do isolamento do restante de seus respectivos países - uma ao norte do Brasil, em Roraima; a outra no sul da Guiana. Em abril de 2009, a última barreira entre elas foi transposta com a abertura de uma ponte. A obra, financiada pelo governo brasileiro, deu passagem livre a quem precisava pagar para cruzar o rio Tacutu para tarefas simples como estudar ou fazer compras. Por mais que a população das duas cidades - pouco mais de 10 mil em Bonfim - já estivesse acostumada a conviver com o português e o inglês, o real e o dólar guianense, só agora existe uma ligação concreta do Brasil com o único país de língua inglesa da América do Sul.A ponte promete ser apenas a primeira amálgama entre os dois países. O Brasil já fez medições para pavimentar a via que liga Lethem a Georgetown - hoje separadas por um caminho de 700 quilômetros de terra. A ligação com o Atlântico Norte, pelo porto da capital guianense, facilitaria exportações para a América do Norte e a Ásia - hoje, os navios saem do porto de Manaus, no rio Negro. Os dois países assinaram ainda acordos de mapeamento geológico e segurança. O primeiro prevê o treinamento de técnicos para estudos de potencial minerológico. Os outros visam resguardar a fronteira do tráfico de drogas e de diamantes. As pedras são retiradas por garimpos ilegais na Venezuela e saem do país por Santa Elena de Uiarén, que faz fronteira com Pacaraima, no Brasil. De lá seguem para Georgetown, passando por Bonfim e Lethem.O interesse em vender as pedras como se fossem retiradas de minas da Guiana é simples: desde 2003, o país é signatário do Kimberley Process - acordo firmado por países produtores de diamante, a ONU e a ONG Partnership Africa Canada, e que fiscaliza o comércio que financiou guerras em vários países africanos nos anos 1990.Assim que atravessa a ponte do lado brasileiro para o guianense, o motorista tem de guiar na mão inglesa, no lado esquerdo da pista. Outro estranhamento se dá na arquitetura: casas em estilo colonial inglês, distantes umas das outras, dominam a paisagem. Entre uma e outra, lojas: boa parte de propriedade de descendentes de indianos, vendem principalmente produtos falsificados, vindos por contrabando da Ásia, como as camisas polo da marca francesa Lacoste (8 reais, acredite) e os tênis Nike Shox (50 reais).Nesse submundo da globalização comercial, o real circula normalmente. A cotação, que oficialmente é de 100 dólares guianenses para cada 85 centavos de real, fica em 100 dólares para cada unidade da moeda brasileira. Um comerciante me garante que vende no atacado para brasileiros vindos de Manaus e algumas capitais do Nordeste, apesar de a Receita Federal permitir que se traga para o Brasil apenas duas peças de roupa e um tênis por pessoa. "Às vezes alguém me pede 300 camisetas. Paga em dinheiro vivo e vai embora", conta ele. Como a ponte trouxe também postos da Receita e da Polícia Federal, a travessia é feita a pé por carregadores ou por canoeiros na calada da noite.O ex-militar Dulcídio da Silva Oliveira explorou por 15 anos a travessia do rio por uma balsa. Em cada viagem iam dez carros, a 20 reais cada um (a volta era incluída no preço). Apesar de sua galinha dos ovos de ouro ter morrido, Cabo Dulcídio, como é mais conhecido, pode se considerar um homem bem-sucedido aos 58 anos. Investiu o dinheiro ganho com a travessia numa propriedade de 450 hectares, em que cria 120 cabeças de gado, além de ter comprado algumas casas, as quais aluga. "Eu prestava um serviço social aqui, gerava empregos. Por isso acho que cabia uma indenização", reclama. Os empregos a que ele se refere, além dos taxistas - antes a balsa concentrava neles o movimento de passageiros, agora disperso -, eram os três operadores da balsa, o vigia e uma senhora que vendia lanches na margem. "Agora alguns canoeiros ficam na ponte fazendo câmbio, porque não têm mais como se sustentar. É uma tristeza", completa.Nem todos, naturalmente, estão satisfeitos com a nova realidade da fronteira. Mas o fato é que a ponte só faz incrementar ainda mais o intercâmbio entre os dois lados. Eu observo bem isso em uma festa lotada de moradores de ambos os lados na Escola Estadual Aldébaro José Alcântara, no ginásio poliesportivo de Bonfim. Alguns estudantes - muitos filhos de casamentos entre brasileiros e guianenses - se preparam para uma competição de dança. Wanderson, o mais velho dos irmãos Jackson, de 16 anos, está tenso. Usa boné e camisetas brancos, calças jeans largas, assim como os irmãos Michael, de 15 anos, e Joshua, de 12 - todos em sintonia para a coreografia de hip hop que executarão em instantes.Billiey, Rufina e Khadija, pai, mãe e irmã de Wanderson, chegam comigo ao ginásio, em uma carona que lhes ofereço desde o posto da Polícia Federal, perto da ponte. Billiey é um homem grande, cultiva uma barba estilosa e usa um vistoso chapéu preto. Sorridente, ele apenas lamenta o fato de não poder atravessar a ponte em sua van - a fronteira só fica aberta para veículos das 7 às 19 horas -, na qual trabalha transportando passageiros de Lethem para Georgetown, e vice-versa. O guianense faz o percurso da sua cidade à capital em 12 horas, e cobra 90 reais por pessoa. E avisa logo: o passageiro chegará suado e cheio de poeira ao seu destino.É uma noite excepcionalmente animada na cidade. A 45 quilômetros do centro, a comunidade indígena do Jaboti (uma das nove que estão na região de Bonfim) promove também um grande festejo. Eu soube do evento uns dias antes, e fui cauteloso, perguntando o tempo todo se minha presença não seria incômoda durante uma celebração indígena. Garantiram-me que não - e, ao chegar lá, tudo faz sentido. A festa é de índio, mas a linguagem é pop e universal, com muito forró e a rapaziada trajando calça jeans, tênis e camiseta - comprados a bons preços em Lethem, of course. Carros e motos de Bonfim lotam o estacionamento improvisado da comunidade, em que convivem tanto índios uapixanas quanto macuxis. E o forró ferve madrugada adentro.A região do alto rio branco, onde se localiza Bonfim e Lethem, era habitada por diversas tribos indígenas quando os colonizadores portugueses ali chegaram, no século 18, em expedições para captura de índios para ser vendidos como escravos. Com a criação das primeiras vilas e o crescimento da atividade agropecuária, no século 19, toda a economia da região passou a depender da mão de obra indígena, fosse no extrativismo, fosse na criação de gado ou em serviços domésticos. Muitos povos nativos foram dizimados ou se incorporaram a outros. A maioria hoje se aglutina entre os uapixanas e os macuxis.O mesmo ocorria do outro lado do rio Tacutu. Os holandeses chegaram por volta de 1580 a essa região entre a Amazônia e o Caribe, cuja posse oscilou depois entre a Holanda e a Inglaterra. Em 1831, contudo, seus três territórios - Demerara, Berbice e Esequibo - foram unificados e renomeados como Guiana Inglesa. Com a abolição da escravatura, os indianos chegaram, a partir de 1838, para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar. Seus herdeiros compõem, juntamente com os descendentes de escravos africanos libertos e os indígenas, o grosso da população. Portugueses e chineses, que chegaram posteriormente, formam um grupo minoritário no país que, com a independência, em 1966, passou a chamar-se apenas Guiana.Esse leque de influências revela-se hoje nos cultos religiosos, em qualquer lado da fronteira. Num pequeno salão, a pastora Thereza Torres proclama: "God is good...". "All the time!", completam os fiéis presentes, boa parte descendente de índios como ela. Uma pintura na parede proclama: "Jesus is Lord". Todos falam inglês. Mas estou em Bonfim, na Word of Faith. Fundada em 2000 pelo missionário David Lindstrom, a igreja é frequentada tanto por moradores de Lethem como por guianenses que vivem em Bonfim.Os cristãos são maioria nas duas cidades, como no resto do Brasil e da Guiana. Na antiga colônia inglesa, no entanto, hindus e muçulmanos também são comuns, preservando as religiões que foram introduzidas no país pelos indianos. (Acredita-se, porém, que já existiam muçulmanos na leva de africanos que chegou antes. O mais célebre seria o herói nacional Cuffy, escravo que liderou uma revolta em 1763.)Da convivência entre negros, índios, indianos e ingleses é que surgiu o idioma crioulo. Uma língua crioula tem sempre outra como base, e surge quando pessoas de diferentes origens precisam se comunicar - situação comum na Guiana nos séculos 18 e 19. Não por acaso, a maioria delas tem como base o inglês, o português e o francês, idiomas de países colonizadores.Presencio um diálogo no crioulo da Guiana. A fala lembra o inglês, mas é extremamente rápida. Pergunto ao caminhoneiro Vijay Narine, um sujeito de baixa estatura que poderia ser confundido com um taxista de Mumbai, que língua ele havia acabado de falar. "Guyanese", responde ele. É assim que é chamado o crioulo guianense.São os descendentes de indianos como Vijay que compõem a população hindu da Guiana. Em Lethem, porém, não há nenhum templo para venerar Brahma, Vishnu e Shiva. Os praticantes do hinduísmo fazem suas orações em casa, em altares especialmente preparados. Já os muçulmanos possuem uma mesquita, ao lado da loja do imã Hakim Shaheed. Às 13 horas, pontualmente, ele e mais três homens se reúnem para uma das cinco orações diárias. A construção, com duas pequenas torres na face voltada para Meca, é modesta mas transmite uma paz difícil de explicar. Abdullah Hakim, de 19 anos, sobe num degrau, ainda do lado de fora, e faz o azan, anúncio em voz alta do início das preces.Todos descalços sobre o chão acarpetado, os três homens, de frente para o imã Shaheed, ajoelham-se e começam a rezar. O imã lê trechos do Corão. Silêncio. Cada um fecha os olhos e parece conversar consigo próprio. Ajoelham-se novamente, a testa tocando o chão. Repetem o ritual mais uma vez, depois de ouvir outras palavras do livro sagrado. Não mais que 20 minutos se passam entre o início e o fim da oração. Posso notar a emoção nos olhos de Edonis Pereira Ribeiro, ex-policial carioca convertido ao Islã há 32 anos, de passagem por Lethem. Por instantes, embarco na experiência espiritual do grupo. O imã, em seguida, procura alguma coisa em um armário. Traz um exemplar do Corão e me presenteia. Fico surpreso e grato. Mesmo depois de mergulhar num caldeirão de tantas culturas, vejo um só povo. Apesar das diferenças de costumes, todos eles, quando se referem à sua terra, estão falando de um mesmo lugar cortado por um rio. E agora unido por uma ponte.

Fonte : National Geografic, Editora Abril

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